sexta-feira, 20 de junho de 2014

Literatura: comida material da alma

“pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
Em meu país de memória e sentimento,
Basta fechar os olhos;
É domingo, é domingo, é domingo”.
Adélia Prado, “Para comer depois” em Bagagem, 1976.

A representação do alimento parece-me apropriada para costurar certos pontos das analogias sendo que comemos também da leitura: devoramos livros quando estamos com fome, salivamos ao contato de uma cena. Na malha de emoções e lembranças sensoriais da infância que nunca nos abandona é que recordamos algumas dessas representações alimentares como componentes de muitas narrativas já incorporadas no inconsciente coletivo: a cesta que a Chapeuzinho Vermelho (azul, cor-de-abóbora, amarelo...) leva para sua vovó, os feijões mágicos em João e o pé de feijão ou ainda o mingau em Cachinhos dourados e os três ursos. Percebido isto, partimos do pressuposto de COSSON (2011, p. 40) cujo pensamento afirma que “aprender a ler é mais do que adquirir uma habilidade, e ser leitor vai além de possuir um hábito ou atividade regular” para experienciar práticas de leituras mediadas nas relações humanas em torno de um dos espaços mais afetivos que há: a mesa. Surgiu aí a promoção de um “Chá literário” com as turmas do maternal e nível I e "Conversas Doces" com o nível II e o primeiro ano do ensino fundamental.
Fonte: http://www.huffingtonpost.ca/2012/11/13/coffee-table-books_n_2123931.html
Anteriormente selecionei duas obras para contação: “Menina bonita do laço de fita” de Ana Maria Machado com ilustrações de Claudius e “Os três lobinhos e o porco mau” de Eugene Trivizas com ilustrações de Helen Oxenbury. A primeira obra, conta a história de um coelho branco que sonhava em ter uma filha pretinha, assim acompanhamos suas aventuras e peripécias com a menina para descobrir o segredo para o sucesso dessa empreitada. A segunda obra, inverte os sabidos papéis do lobo mau e dos porquinhos, satirizando elementos atuais para reinventar a história.


Foto: Detalhe das capas dos livros.
Familiarizado com as narrativas, apresentei e efetuei a leitura com observações das ilustrações para as crianças. No segundo momento os convidei para um chá literário com Os três lobinhos e o porco mau (ensino infantil) e para conversas doces o primeiro ano do ensino fundamental ao lado da Menina bonita do laço de fita. Pretexto para compartilharmos impressões de leitura, interpretação de mundo, manifestações de opiniões e partilharmos dos dois tipos de alimento em mesa: o físico, a comida propriamente dita e o espiritual, a literatura (no caso, aqui a digestão). Mas que tipo de alimento ofertar? Bem, na história dos três lobinhos o chá e frutas são adorados pelo trio (depois pelo porco redimido) e posteriormente por nós (rsrs). Na história da Ana Maria, o coelhinho toma muito café e come muita jabuticaba... mas infelizmente o excesso não o fez nada bem. Por isso decidimos fazer algo mais doce e tradicional brasileiro: o brigadeiro!

Foto: No detalhe eu e a profe Ane com as crianças.                                                                                                Fonte: Pessoal.
Foto: 1. Com a profe Roberta fazendo o brigadeiro. 2. Flagra da Morgana admirando os copinhos sendo recheados de brigadeiro! rsrs                                                                                                                                                          Fonte: pessoal.
Foto: Com a professora Débora e a turminha do Nível II!                                                                                       Fonte: Pessoal.
Foto: Posando para a foto depois do Chá literário com a professora Lassara e a turminha do nível I.
Fonte: Pessoal.
O comer é um ritual mágico. Comer é o impulso mais primitivo do corpo. Preparamos os chás de flores e cortamos as frutas (vermelhas) com as crianças. Sentimos o cheiro de a flor brotar na água (rosas? camélias? cravos?), provamos o doce gosto do morango, da maça... Com leite condensado também pode!!! Delícia. Todo o processo ascendendo os cinco sentidos, no entanto sem perder nenhuma fala das crianças: “os lobinhos tinham razão”, “os lobinhos tomaram este? Eu também tomo”, “quando eu era ‘pequenininho’ minha mãe me dava chá também”. Nasce daí a primeira filosofia, sumo de todas as outras: o mundo é para ser comido. História e literatura são para serem comidas. “Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos e lutas”, escreveu Neruda.







As crianças acompanharam e ajudaram em todo o processo do brigadeiro rente ao fogão. A homogeneização do leite condensado com o chocolate e a manteiga, a apuração do ponto e a acomodação nos copinhos. Saiu um brigadeiro quente, cheiroso e grosso. O gosto era doce, caseiro, como as receitas tradicionais de casa.  Ao final, algumas crianças repetiam que o segredo da menina bonita do laço de fita pra ser tão pretinha e bonita (além das “artes de sua avó”) era ter uma mãe como cozinheira de mão cheia. Depois as crianças levaram seus brigadeiros para as famílias provarem também e finalizamos o encontro extasiados com estas duas artes, Literatura e Culinária.

Foto: Detalhe da cena do chá em "Alice no país das maravilhas" \o/
Abraços, Bruno.

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